quinta-feira, 4 de novembro de 2010

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

sobre outro corpo político

Tenho andado a ler em voz alta para Ibon “O que resta de Auschwitz” de Giorgio Agamben, livro no qual ele esmiúça a questão do testemunho. O que é o testemunho, sobre o que esse testemunho pode falar, o que para ele é indisível, quais os lugares possíveis da fala de quem se propõe a testemunhar, que caminhos pode o testemunho percorrer. Auschwitz, parece ser o exemplo que demonstra um paradigma em que a essa voz do testemunho não pode afinal testemunhar, mas apenas “testemunhar sobre um testemunho que falta”[1], insistir na missão de lembrar que de fato não podem falar os verdadeiros testemunhos. Da vivencia da experiência nos campos, só quem poderia falar, seriam os mortos.

Desde esse pensamento e me recordando de um exercício de criação que a muito fazemos em nossas praticas, ensaios e performances, o “exercício da descrição”, algumas conexões tornaram-se possíveis e de novo pude me aproximar de um corpo político, desde outro viés, esse viés do testemunho, daquele que fala sobre algo que experiência, porém nunca é capaz de abranger sua totalidade, podendo servir-se de muitos caminhos, de diversas linguagens para alcançar seu objetivo, ou pelo menos insistir em alcança-lo.

O exercício é sobre descrever em tempo real os movimentos físicos, das atenções, espaciais, temporais e memórias, que acontecem no momento mesmo da dança. Nessa pratica, muitas vezes nos damos conta da impossibilidade da linguagem falada dar conta de tudo que acontece quando curvamos o tronco sobre o estomago. Muitos delays, frases que são completadas com outras frases, palavras que calam e viram um pé que sai do chão, uma pausa onde tudo vai mais rápido que nunca. Sobre as representações e as maneiras que temos de falar acerca de nós mesmos. Sobre como entendemos e nos relacionamos com esse corpo. Que possibilidade podemos abrir e experienciar cada vez que acessamos esse lugar de falar-se a si próprio, ao espaço, como “sendo”. Um corpo político que se aproxima das formas mais categorizadas de entendimento de si, reconhece-as e pode abrir-se a outras maneiras de entender-se no próprio movimento de desentender-se.

O corpo que me aparece com a história do testemunho e o exercício da descrição, é esse corpo de que falei acima, mas em uma nova camada, a camada daquele que se diz a si próprio e imprime uma história e uma visão de ser daquele momento, que deixa um rastro de memória, que deixa no espaço e nos outros e em si mesmo essa possibilidade de brincar com um testemunho que não fala só do passado, mas que pode ser atemporal, na medida em que assume a transitoriedade do que conta, mas não deixa de contar. Na medida em que se dá conta de que o momento de contar é o que importa, não tanto o que se conta. Reconhecer esse compartilhar como uma ação que carrega em si mesma muitas incógnitas, que depende de seus interlocutares, e chama-os a um esforço, para tornar-se relação, para poder trabalhar o paradigma de se dizer o não dizível, como algo que pode transitar camadas que se dizem a si mesmas e são acompanhadas por escutas que não só as que trabalham no ouvido interno.

É surpreendente como ao longo do tempo e da insistência em uma pratica, as camadas vão revelando-se e posso me encontrar mais confusa sobre todas as coisas que creio ser.



[1] AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). São Paulo, Boitempo, 2008, p. 43.